3.2.14
A aliança
Luis
Fernando Verissimo
Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De
qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a
crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no
Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno
mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo
meu. Fictício, claro.
Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os
dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que
nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas
ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe
um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e
preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o
desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro
tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências... Conseguiu
fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o
porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no
chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a
chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro.
Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar.
Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a
pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e
respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.
— Você não sabe o que me aconteceu!
— O quê?
— Uma coisa incrível.
— O quê?
— Contando ninguém acredita.
— Conta!
— Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?
— Não.
— Olhe.
E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.
— O que aconteceu?
E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança
no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e
desaparecendo.
— Que coisa - diria a mulher, calmamente.
— Não é difícil de acreditar?
— Não. É perfeitamente possível.
— Pois é. Eu...
— SEU CRETINO!
— Meu bem...
— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa
aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa.
Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em
que só um imbecil acreditaria.
— Mas, meu bem...
— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel.
Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!
E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou
em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara?
Nada, nada. E, finalmente:
— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:
— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não
tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu
compreenderei.
Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez
minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento
deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.
— O mais importante é que você não mentiu pra mim.
E foi tratar do jantar.
Texto extraído do livro "As mentiras que os homens
contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 37.
muito bom esse livro!Na verdade os livros dele são todos muito bons!hehe
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